quarta-feira, 25 de agosto de 2010
PATRIMÓNIO CULTURAL, IDENTIDADE E MUSEUS EM CABO VERDE
Abordar o assunto museu conduz-nos a questões estruturais, nomeadamente as políticas culturais do país. Para falar de museologia em geral, há que reportar a dois momentos conceptuais que por sua vez estão sujeitos a influências dos contextos e das dinâmicas sócio-económicas e culturais das nações: O momento da autenticidade e o da representatividade. Abordar o tema dos museus
O momento museológico baseado no critério da autenticidade desenvolve-se num contexto em que o mundo passa por uma série de dinâmicas: o acelerar dos sistemas económicos, associados a fenómenos como o desenvolvimento dos meios de comunicação e de transporte de massas; o crescimento das cidades; etc. Essas dinâmicas conduzem a uma nova forma de conceber o tempo e o espaço, instala-se assim um quadro que, segundo autores pós-modernistas, conduz a globalização económica à globalização cultural. Basicamente, dá-se o distanciamento das pessoas em relação seu passado histórico, às suas origens, e às especificidades culturais locais.
Consequentemente, a ausência de referentes de identidade, que no fundo tem a ver com estabilidade e continuidade, face a uma ameaça de desaparecimento de recursos culturais, produz um sentimento de nostalgia em relação ao passado. Daí a procura daquilo que é autêntico, isto é, a valorização da memória, dos locais do passado, desde os monumentos, arquivos, museus e outras formas de patrimonialização. Deste modo, em resposta às pressões da globalização surge a consciência patrimonial.
Nos anos 80 – 90, identificaram-se um conjunto de circunstâncias no contexto social, político e económico que convergiram para a representação do passado como um tempo de ouro perdido.
Ainda dentro da corrente da autenticidade, os processos de patrimonialização envolvem não só a preservação dos vestígios do passado como também a simulação dos seus contextos com o propósito de aumentar o seu potencial de atracção. Assim, um passado a ser observado e experimentado. Em modo ilustrativo, temos aqui em CV, o exemplo dos desfiles de trajes e outros elementos relacionados com festas de romaria, e de Carnaval fora das próprias épocas. E por vezes há a tendência de recriar lugares e experiências cada vez mais distantes do quotidiano das pessoas.
É assim que o património cultural encerra potencialidades para a rentabilização social e económica. Os agentes de turismo
Entretanto, os critérios de autenticidade, ou de raridade tornaram-se cada vez mais problemáticos, à medida que surgiram novos estudos sobre o conceito de cultura enquanto sistema de significação bem como os conceitos de património cultural e objecto museológico.
O problema é que com a busca do autêntico as pessoas transformaram-se em consumidores passivos de bens culturais, ignorando as múltiplas variáveis que participam nos processos de construção de significados culturais. A necessidade de preencher tal lacuna leva os monumentos e os museus a incluir projectos que reportam também a um passado menos glorioso, ou mesmo oculto, versões alternativas da História, da memória e da cultura. Nasce a tese da representatividade. Neste percurso surgem vários tipos de museus e sítios patrimoniais, os objectos eruditos e os populares passam a receber um mesmo tratamento. Passa-se a valorizar vivências das pessoas comuns, como é o caso dos museus rurais e dos industriais. As próprias exposições em museus passam a dar menos valor ao objecto em si, dando lugar a uma nova forma de comunicar com o público através de novos suportes expositivos bem como slides, outros audiovisuais. Os visitantes são “segmentos de mercado” com diferentes características e necessidades.
A tese da representatividade dá mais ênfase ao património imaterial, valorização das práticas simbólicas e identificação de grupos.
O tema de património cultural está estritamente ligado à identidade. Castels (2003) defende que a construção da identidade pressupõe um fim, e há que apurar que fim é esse e que actores estão implicados.
Uma pequena viagem no tempo permite-nos verificar as linhas que moldaram o património cultural cabo-verdiano. É de salientar o papel preponderante dos poderes no processo de valorização do património cultural. Os estudiosos, os escritores e os investigadores têm um papel importante formação da consciência social. Ao evocar os anos 30 vemos escritores, poetas, contistas e cronistas, que se denominavam de claridosos pelo facto de se lançarem na aventura da descrição da realidade cabo-verdiana. Apesar de CV fazer parte do império português, havia uma forte tendência para a marginalização dos crioulos, por isso, o objectivo dos autores, como Jorge Barbosa, Baltazar Lopes, Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves, e outros, era impedir que entre os cabo-verdianos e os portugueses se estabelecesse uma descontinuidade. Longe de ser visto como um complexo do colonizado, Gabriel Fernandes afirma que o trabalho dos claridosos devia ser visto como um passo significativo para a emancipação do cabo-verdiano. Através da literatura, os claridosos divulgaram a mensagem da emancipação e da consciencialização da cabo-verdianidade para o resto do tecido social cabo-verdiano. Esse desabrochar da mente cabo-verdiana continuou a passo galopante até as teses independentistas dos anos 60-70 que tinham como figura intelectual principal Amílcar Cabral.
Nos anos 70, os discursos centravam-se na valorização das raízes, o objectivo era rejeitar tudo aquilo que dizia respeito à cultura europeia. Isso teve um papel importante na consciencialização independentista mas, por outro lado, teve um papel castrador na construção da cabo-verdianidade.
Os intelectuais de outrora delinearam desta forma o entendimento daquilo que é o património cultural cabo-verdiano. Ainda hoje, aquilo que eles escreveram povoam as nossas mentes e determinaram a nossa forma de conceber a nossa própria identidade. Por causa das diferentes teses dos intelectuais de outrora, até hoje realizam-se debates com ideias dispares sobre a identidade cabo-verdiana. Entretanto, com a proliferação de estudos sobre o tema, gradualmente podemos afirmar que o tecido social em geral terá novas opiniões sobre aquilo que constitui o património cultural cabo-verdiano.
Fontes:
CASTELLS, Manuel (2003), O Poder da Identidade volume III, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.
CHOAY, Françoise (2006), A alegoria do património, Lisboa, Edições 70.
FERNANDES, Gabriel, (2006), Em busca da Nação. Notas para uma reinterpretação do Cabo Verde Crioulo. Florianópolis, Brasil, Editora da UFSC, Praia, Cabo Verde Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro
GOMES DOS ANJOS, José (2002), Intelectuais, Literatura e poder
HENRRIQUES, Cláudia (2003), Turismo, cidade e cultura, planeamento e gestão sustentável, Lisboa
URRY, John. (1997), Consuming places, Londres, Roudlege