A História da ilha de São Vicente dá
conta das várias tentativas falhadas de povoamento. Desde sempre, os seus
habitantes sofreram com crises económicas. No tempo áureo do Porto Grande, a
maior parte da população vivia do trabalho das carvoeiras. A partir dos anos
30, o Porto Grande conheceu um declínio sem precedentes e, em 1958, as companhias
carvoeiras deixaram o Porto Grande. A nível da saúde pública, em 1877, o abuso
do álcool constituiu o maior problema social.
Os dados acima
enumerados, demonstram os contornos estruturantes que marcaram definitivamente
o sãovicentino. Em paralelo, apresentamos as passagens do autor que constituem
descrições interpretativas do universo quotidiano do sãovicentino, de realçar,
o sentido interventivo do autor.
“Talvez ainda vejamos a
Ribeira de Julião reverdecer. São Vicente é terra de mudanças bruscas, de
surpresas.” [3]161
“São Vicente é pequeno, os prazeres são
monótonos, mas esta nossa cidadezinha, bem explorada, rende. Aos domingos, pela
manhã, eram mergulhos sem fim no mar da Matiota.
À tardinha, voltas
também, infindáveis, na Praça Nova, gracejando com moças bonitas da época, ou
então, discutindo futebol, ou mais raramente, qualquer ideia.” [4]83
“A aspereza do mato é
um perigo, igualmente, o indiferentismo da vida cabo-verdiana mata as ambições
intelectuais.” [5]156
“São Vicente viveu
embasbacado no seu porto. Era fonte de vida. Eteno. Nada poderia enfraquecer a
sua pujança. É natural: No meio da prosperidade, não nos lembramos que tudo
acaba. Ele – o porto – ainda lá está. Mas a navegação que trazia que trazia
vida desviou-se para outras paragens. O paquete passa largo; tem frigoríficos
bem fornecidos; não compra da Ribeira de Julião, não alimenta o comércio, não
deixa dinheiro. Os lavradores e desanimaram, retiraram-se.”[6]
163
Actualmente a ilha de
São Vicente apresenta a maior taxa de desemprego das urbes do país. Já nos anos
70, o autor descrevia o mesmo cenário que temos diante dos nossos olhos, embora
hoje em maior escala dado ao número de habitantes e de jovens em idade activa.
“A população não vive
desafogada; sem contar um com o outro, tem um viver difícil. Esperam todos da
cidade e da baía não dão para todos. Lutam… As mulheres “sobem” o seu cuscuz,
fazem o seu giro, compram e revendem confeitarias… Mas isso tudo deixa pouco. É
mais para que se não diga que uma pessoa está em fazer nada. Os homens andam
pela cidade a ver se tiram um dia de serviço. Contudo resignam-se. Se há
trabalho, arma-se a caldeira, acende-se o lume, come-se; se não há, assentam-se
à sombra fresca dada por uma empena, visita-se o quarto de uma amiga onde haja
reuniões, sonha-se com viagens ao estrangeiro e trabalho bem pago, conversa-se,
joga-se dorme-se, procria-se”
.[7]Noite
de vento, 24, 1970
Um estudo sobre o
universo feminino em Aurélio Gonçalves, desenvolvido por Gama[8],
analisa o trabalho do autor, lançando luz sobre o facto de a mulher ser a
personagem mais valorizada.
“Tudo se desenrola por
causa, em consequência e à volta delas, em função das suas histórias e das suas
necessidades.” [9]51
“A condição feminina é
pois um elemento estruturante da sociedade, não se tratando apenas de um
simples tema de ficção literária, mas sim de uma substância cultural que se
nutre a narrativa, ultrapassando de longe o lugar sexual do autor, destrinçando
por completo o ser biológico que escreve, da escrita que produz, para
representar e problematizar o mundo.” [10]
Olímplia, personagem da
novela “Adeus ao vestido de baile”, em Terra da Promissão, é uma personagem que
apesar de ter seguido todas as regras da doutrina de sedução mindelense para
arranjar namorado (dar grandes passeios à tarde na praça nova), não conseguiu
casar. “Segundo o povo, faltava-lhe o indefinível que chama e envisca, ou pode
ser que ela não inspirasse confiança.”[11]
“Olímpia empregara-se e
ganhava a vida sem marido” A rejeição do poder masculino e a rebelião contra os
valores patriarcais faz com que essas mulheres educadas dentro dos padrões
moralistas sejam consideradas à margem da sociedade.
Actualmente, organismos
estatais e ONGs trabalham em sintonia no sentido de divulgar a mensagem da
necessidade do empoderamento da mulher, como sendo um dos objectivos a longo
prazo de desenvolvimento do país. Por exemplo, quanto à violência doméstica
contra a mulher houve um avanço significativo no que toca ao poder de denúncia.
Anteriormente, a formulação de uma queixa-crime junto da polícia de ordem
pública não tinha utilidade relativamente à eficácia desejada. Hoje em dia, com
a introdução de acções de formação junto dos agentes polícia e a criação de
gabinetes de apoio às vítimas mudaram o conceito de denúncia. O acto de
denunciar não só permite a resolução imediata do problema como também constitui
uma medida de longo prazo para a consciencialização da sociedade do desafio a
levar a cabo. Neste âmbito, houve avanços significativos apenas vencendo o
silêncio contra a violência.
Mas ainda há silêncios
a quebrar na questão da condição feminina, as mulheres se submetem, por vezes
ao silêncio por causa da dependência económica em que se encontram. Hoje, ela
trabalha fora de casa, por vezes, é chefe de família vivendo numa sociedade de
moral patriarcal. Neste caso, a legitimidade do poder no homem não se verifica,
há uma igualdade a nível dos fenómenos sócio-económicos. Mas os mecanismos
inconscientes de resistência do sistema patriarcal sobrevivem, nas palavras,
nas atitudes, nas letras das músicas, na festa, na difusão de imagens, etc. A
obra de Aurélio Gonçalves dá exemplos dessa “resistência”
O autor menciona passagens sobre festas,
aludindo às “irregularidades conjugais ou sociais”.
“O baile nacional, na
gíria dos boémios, era, nada mais, nada menos do que a reunião dançante que
tomavam parte homens da sociedade, casados ou solteiros (ou gente com quem os
primeiros já pudessem acamaradar e folgar) e raparigas do povo, escolhidas –
sendo possível – entre as mais bonitas.” [12]P78
Pode-se dizer que
desapareceram. Tinha ser. Não era das irregularidades conjugais ou sociais mais
criticadas, mas as esposas, por via de regra, viam-no com maus olhos.
Os costumes de São
Vicente, como é natural, evoluem e seria interessante – não me faltando a
pachorra – pôr-me aqui a palpitar justificações. Quem sabe se a mistura de
classes não levanta maiores escrúpulos actualmente, se o cabo-verdiano não
rectificou a sua concepção de casamento. [13]P.
79
[1] António
Aurélio Gonçalves “A visita de pêsames”, in
Terra da Promissão, Praia, Banco de Cabo Verde, p.62
[2] Idem,
p.65
[3] António
Aurélio Gonçalves “Lázaro”, in Terra da
Promissão, Praia, Banco de Cabo Verde, p.161
[4]
António Aurélio Gonçalves “Reinaldo e suas cortesãs”, in Terra da Promissão, 1998, Praia, Banco de
Cabo Verde, p.83
5
António Aurélio Gonçalves “Lázaro”, in
Terra da Promissão, 1998, Praia, Banco de Cabo Verde, p.156
6idem,
p.163
8António
Aurélio Gonçalves “Reinaldo e suas cortesãs”, in Terra da Promissão, Praia, Banco de Cabo
Verde, p78
9 Gama, Maria
João, 2009, O Universo feminino em
António Aurélio Gonçalves, Lisboa,
[8] Gama, Maria João, 2009, O Universo feminino em António Aurélio
Gonçalves, Lisboa,
[10] idem
[11] Idem,
p.77
[13] Idem,
p.79
Boa tarde Isa. Navegando pelas "ondas" da cultura caboverdeana, que tanto adoro, deparei-me com o seu texto onde consta uma citação do meu livro. Fiquei muito feliz por ver que está a útil para quem, como eu, tem o Mindelo no coração. Um abraço.
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