Mindelo e o Mar
Introdução
O objectivo deste
trabalho não consiste num exercício de crítica literária mas sim numa análise
etnográfica, os textos literários são usados como se fossem relatos fornecidos
por informantes. As obras consultadas são as autobiografias: “Lombianinho” de
Sabino Lino Évora, uma narrativa passada nos anos 50 “Capitania, Romance de S.
Vicente de Cabo Verde” de Joaquim Saial, uma narrativa passda nos anos 60 e as
novelas de António Aurélio Gonçalves no volume intitulado “Terra da Promissão”.
“Para a Antropologia, o texto literário pode e
deve constituir um elemento de reflexão sobre realidades vividas mas é,
sobretudo, um elemento útil na análise das construções sociais tecidas em torno
de vivências, reais ou imaginadas.” (Lassave, 2002:37),
“Do mesmo modo que o informante transmite ao
antropólogo a sua percepção da realidade, a literatura não se limita a
reproduzir ou a reflectir a realidade de forma passiva. A literatura é sempre
uma representação do real” (Eagleton, 1978:66)
“Na linguagem que
utiliza, pela escolha de temas e pelas formas de os abordar, o autor transporta
para o texto o universo cultural em que se insere.” (Archetti, 1994:17)
O ponto I do trabalho
consiste numa breve caracterização da História do povoamento e as vicissitudes
socioeconómicas da ilha de São Vicente. O ponto II aborda o legado cultural dos
ingleses na ilha. O ponto III trata do estudo dos mecanismos informais de
diferenciação de classes. O Ponto IV consiste num numa análise da emigração e
as relações sociais. O ponto V ficou reservado à caracterização do edifício da
Capitania Velha.
I - Mar e sociedade mindelense – Breve incursão
Histórica
As tentativas falhadas
do povoamento de São Vicente, revelam a premonição duma ilha fadada a viver em
crise. O tempo áureo do Porto Grande, deixou na alma do sãovicentino a
inscrição do carácter fugaz de “prosperidade económica”. Talvez, por isso, a
afamada atitude de “gastar tudo o que tem sem pensar no dia de amanhã.”
Em 1820, a ilha contava com
uma população de 200 pessoas que viviam em condições precárias. Em 1838, o
Ministro das colónias assinou um o Decreto Régio que mandava criar uma povoação
denominada de Mindelo. Em 1850, uma lufada de ar fresco se fez sentir na
economia da ilha, com a instalação das companhias carvoeiras. Em 1958 Mindelo
foi elevado a categoria de Vila de acordo com o Decreto Régio de 29 de Abril de
1858, BO 29/1858. [1]
No tempo áureo do
Porto Grande, a maior parte da população vivia do trabalho das carvoeiras. O
aumento populacional em São Vicente (De 3717 em 1879 a 6561 em 1889, aumento de
75% em 10 anos) deu-se por causa da fome nas outras ilhas e as consequentes
migrações para São Vicente. A nível da saúde pública, em 1877 o abuso do álcool
constituiu o maior problema social. Em 1905 dá-se a primeira crise grave do
Porto Grande, os rendimentos de São Vicente diminuíram consideravelmente. Mais
uma vez a crise económica instala-se na ilha. A partir dos anos 30, com a
grande Depressão, o Porto Grande conheceu um declínio sem precedentes e em
1958, as companhias carvoeiras deixaram a ilha.[2]
“São Vicente viveu
embasbacado no seu porto. Era fonte de vida. Eteno. Nada poderia enfraquecer a
sua pujança. É natural: No meio da prosperidade, não nos lembramos que tudo
acaba. Ele – o porto – ainda lá está. Mas a navegação que trazia que trazia
vida desviou-se para outras paragens. O paquete passa largo; tem frigoríficos
bem fornecidos; não compra da Ribeira de Julião, não alimenta o comércio, não
deixa dinheiro. Os lavradores e desanimaram, retiraram-se.” (Gonçalves,
1998:78)
“Talvez ainda vejamos
a Ribeira de Julião reverdecer. São Vicente é terra de mudanças bruscas, de
surpresas.” (Gonçalves, 1998:161)
II- Mindelo - O
legado cultural dos ingleses – Anos 50
Aos domingos, por
influência dos ingleses, muitos jovens rapazes usavam fato e calçado brancos
para irem à Praça Nova ouvir música. Todo o mindelense tinha o seu fato branco.
Gostavam de trajar de branco. (Évora, 2009: 133)
“De manhã, antes de entrar no Banco, observava
os muitos estivadores que aguardavam as lanchas e os rebocadores no cais para
encher de carvão a “Quintalona”, destinada aos carvoeiros. Eram semanas a
abastecer os porões dos carvoeiros. Eram semanas e mais semanas a abastecer os
porões dos carvoeiros que, quando regressavam a casa, nem aa família os
conseguia identificar. Só lhes reconheciam os lábios. A cabeça. P tronco e os
membros, roupa interior e exterior, ficava tudo coberto do pó da safira negra
do carvão de New Castle e Cardiff.” (Évora 2009: 134)
“Muitos aprenderam a
falar inglês, enquanto praticavam desporto. Toi, Óka, João Dóia, Zé Figueira,
Dufega, Damatinha e muitos outros, costumavam jogar na Salina e no Campo da
Fontinha com equipas inglesas. À tarde, de calções brancos, saco às costas,
paus e bolas brancas, iam jogar golfe. Estavam sempre alegres, ouvindo as
pancadas dos paus nas bolas brancas que eram empurradas para os orifícios no
solo de Lazareto. Também jogavam Ténis e Criket em Chã de Cricket.” (Évora, 2009:
135)
III - Classes sociais - mecanismos informais de
diferenciação
a) Inauguração da Praça Nova
No seguimento da
assinatura do decreto régio pelo Ministro e Secretário d’ Estado dos Negócios
da Marinha e Ultramar de Portugal (BO 3/1892), que alterou a configuração
urbana de Mindelo. A construção de um depósito de carvão no Porto Grande de
modo a responder à concorrência que os portos de Dakar e Canárias. A Praça Nova
foi construída em substituição da Praça Dom Luiz que foi a demolir para
funcionar como depósito de carvão. [3]
A Praça Nova
inicialmente ficava longe do centro da cidade para o desgosto da população.
Entretanto pouco tempo depois ela passou a ser um espaço de excelência para a
convivência da população, portanto palco de manifestações de trocas sociais
simbólicas.
“Aos Domingos à noite,
das vinte Às vinte e duas horas, a Praça Nova estava sempre repleta de gente
bem trajada, inclusive militares, ouvindo a Banda Municipal, que ensaiara
durante a semana com o maestro Sr. Reis. Os músicos tinham uma farda bonita:
casaco preto com botões dourados, camisa branca, calças brancas, gravata preta,
sapatos pretos e boné de oficial. Havia três grupos na Praça Nova: O 1º grupo
eram aqueles que andavam calçados e podiam e podiam entrar no meio da praça
para ouvir música e dar voltas; o 2º grupo os que ficavam sentados nos bancos
ouvindo música e conversando e o 3º grupo, o das pessoas descalças que não
podiam entrar para não se misturarem com os que andavam calçados. Davam voltas
no passeio anexo à praça. Os policias cumpriam rigorosamente, sempre olhando
para os pés dos passeantes da Praça Nova.” (Évora, 2009:57)
“ – É verdade, Guida! – Em São Vicente, quando
se fala em “gente branca”, normalmente refere-se a pessoas ricas. Um exemplo é
o Nhô Casimiro. Ele queria ser sócio do Grémio Recrativo do Mindelo, mas não
aceitaram a proposta, simplesmente porque ele é preto, apesar de ter dinheiro e
andar engravatado. Em, resposta, Nhô
Casimiro, para mostrar
à Direcção do Grémio que ele também era “gente branca”, mandou buscar um
automóvel último modelo, o mais fino jamais visto em São Vicente, até agora.” (Évora,
2009:73)
b) Contratação de marinheiros (anos 60)
“Ainda hoje me
pergunto como se sentiriam os marinheiros cabo-verdianos, ao serem tão
discriminados em relação aos seus camaradas europeus. As diferenças entre uns e
outros começavam na preparação básica. Para se ser marinheiro da Capitania dos
Portos, profissão aliás ambicionada por muitos – e que em época de abertura de
vagas dava origem a longas filas de espera – bastava ter cumprido o serviço
militar obrigatório e estar na posse de alguns conhecimentos náuticos. Adquirido
o lugar, a aprendizagem fazia-se à custa da experiência diária, sem qualquer
tipo de instrução organizada – consequentemente, quase sem promoções ou
carreira. Assim, exceptuando a meia dúzia de polícias marítimos que por
inerência do cargo eram obrigados a saber legislação marítima e os dois
pilotos, cuja actividade não se compadecia com desconhecimento de fundos,
correntes e marés, a preparação da marinhagem nada tinha a ver com aquela de
que os colegas provenientes da mãe-pátria eram detentores, feita nas escolas da
Armada, no Alfeite ou em Vila Franca de Xira. Entre estes contavam-se um cabo
escriturário, um sinaleiro, três telegrafistas, um electricista e um
artilheiro, para além do cabo-de-mar, cuja a especialidade era a manobra, num
conjunto pouco numeroso que nunca atingiu a dúzia de elementos, pelo menos até
finais de 1965” (Saial, 2001:33)
IV- Emigração e
relações sociais
a) Anos 50
“As várias gerações de
cabo-verdianos na América continuam cultivando a cultura cabo-verdiana. O cabo-verdiano
na América continua ligado á terra mãe e À família. Escrevem, enviam dólares,
roupas géneros…Procuram por todos os meios ajudar a terra. Quando visitam as
ilhas de férias são distinguidos e chamados de “americanos”. Alguns homens
avançados em idade casam com jovens, enquanto os rapazes fazem casamentos
ilícitos com mulheres idosas para garantir a entrada na América.” (Évora, 2009:109)
b) Anos 60
“Na década de
sessenta, foram abertas as portas da emigração para a Europa, principalmente
Holanda, Alemanha, Inglaterra e Grécia. A Rainha Juliana da Holanda mandou
abrir diques da amizade, recebendo marinheiros cabo-verdianos. O testemunho do
marinheiro cabo-verdiano foi o de Homem Honrado, trabalhador, ordeiro. As
campainhas de navegação holandesa davam prioridade ao marinheiro casado. Tinham
melhores ordenados, melhores garantias de trabalho. Eduardo queria embarcar.
Lombianinho aconselhou-o a casar antes de partir para Holanda. A movimentação
de papeladas no Registo Civil e matrimónios nas ilhas foram muitos. Em pouco
tempo o marinheiro cabo-verdiano ficou conhecido na Europa e os armadores
tinham interesse em tripular as frotas marítimas marítimas com cabo-verdianos.”
(Évora, 2009:111)
“O São Vicentino soube
retribuir essa amizade, através de nomes atribuídos a ruas. Exemplo: Avenida de
Holanda”. A avenida que abrange Monte Sossego e Chã de Cemitério, os lindos
prédios a honrar a soberana simpática, a rainha Juliana, pela amizade que
sempre dispensou a cada emigrante, nos barcos e terras da Holanda.“Um rapazinho
gritava na rua de Lisboa “Olál ta bai, Holandes de cóld d Pêche! Holandês de
Cóld Pêche”_ Há muitos Holandeses que construíram e continuam a construir
lindos prédios e estabelecimentos comerciais nas nossas ilhas, principalmente em
São Vicente, Santiago e Sal. Outros não foram tão felizes nas suas poupanças.” (Évora,
2009:113)
V - Capitania dos Portos (Torre de Belém)
O edifício da
Capitania dos portos, foi construído entre 1918-21. Os anexos foram construídos
em 1937. O edifício foi usado pela Capitania até a construção do novo edifício
do Comando Naval na Avenida Amilcar Cabral em 1961-67. Nos meados dos anos 80
funcionou como instalações da empresa pesqueira SCAPA.[4]
SCAPA foi um organismo
público criado em 1977 que se encarregava de apoiar a pesca artesanal, o mesmo
foi extinto durante a vigência do Plano Nacional de Desenvolvimento (1986-1990)
e simultaneamente foi criado o IDEPE. A SCAPA actuava na comercialização de
pescado e no fornecimento de artes e apetrechos de pesca.
Funcionamento da Capitania dos Portos Torre de Belém -
Anos 60
“O pátio e os anexos
constituíam um complexo moradia dos capitães mor da Capitania. Ainda nos anexos
do pátio funcionava a Secção de Justiça, departamento responsável pelas
investigações relativas a crimes ou litígios de âmbito marítimo.”[5]
“Nos anos 60
edificou-se um anexo que funcionou como o Arquivo dos Serviços Provinciais de
Marinha.”[6]
“Debaixo da casa das ferramentas
e do nível do solo, ocupando todo o quadrilátero da Torre, ficava o porão,
antigo cárcere. Esse espaço funcionou como uma prisão temporária (de algumas
horas a dois dias), relativamente a casos de prevaricação que posteriormente
eram encaminhados para a Polícia de Segurança Pública ou para Fortim Del Rei.”[7]
Rés-do-chão
- Secretaria dos
Serviços Provinciais de Marinha
- Gabinete do Capitão
dos Portos
1º Andar
- Defesa Marítima
- Rádio Naval –
(Funcionários telegrafistas)
- Paiol de Munições
- Alojamento de
marinheiros
2º Andar
- Departamento de
Meteorologia
3º Andar (Acesso – Escada de Caracol)
- Posto dos Sinaleiros
– marinheiros que tinham como função comunicar através de sinais de bandeiras
com navios que entravam e saíam do porto.
BIBLIOGRAFIA
Obras de Literatura de ficção Cabo-verdiana
ÉVORA, Sabino Lino, (2009),
Lombianinho, Mindelo, edição do
autor.
GONÇALVES, António
Aurélio, (1998) “Reinaldo e suas cortesãs”, in Terra da Promissão, Praia, Banco
de Cabo Verde
SAIAL, Joaquim (2001),
Capitania, Romance de São Vicente de Cabo
Verde, Lisboa, Notícias
Obras referenciadas
ARCHETTI, Eduardo P. (1994), Exploring the written Anthropology and the
multiplicity of writing. Oslo, Scandinavian University Press
EAGLETON, Terry
(1978), Marxismo e crítica literária, Porto , Afrontamento
LASSAVE, Pierre,
(2002), Sciences Sociales et Littérature,
Paris Presses Universitaires de France
Outros:
Linhas Gerais da
História do Desenvolvimento Urbano da Cidade do Mindelo, Fundo de
desenvolvimento Nacional- - Ministério da Economia e das Finanças, Praia
SAIAL, Joaquim 2001, Capitania, Romance de São Vicente de Cabo Verde, Lisboa, Notícias
(p.23-31)
SAIAL,
Joaquim 2001, Capitania, Romance de São
Vicente de Cabo Verde, Lisboa, Notícias (p.23-31)